quarta-feira, 14 de novembro de 2012

DESTINO E PREDESTINAÇÃO EM CALVINO

DESTINO E PREDESTINAÇÃO EM CALVINO


Por Olivier Abel

O perfil intransigente, quase caricatural, de Calvino, em muito se deve à terrível palavra "predestinação", que tem se tornado quase que o resumo de sua teologia, e como que seu estilo. Examinando de perto a ideia da predestinação, trata-se menos de uma doutrina estável e mais um paradoxo dinâmico de extrema tensão típica duma inflexão. Quem pode defender que a sua existência esteja sujeita a uma doutrina tão terrível, o que equivale dizer tão escandalosa, e assim mesmo se referir a ela como "doce e mui saborosa"? Essa questão não envolve somente a coerência do nosso teólogo. Sequer diz respeito à sua coerência biográfica, sob a qual essa ideia de qualquer sorte se sustenta, atinge mais diretamente a questão da coerência subjetiva do seu pensamento teológico. Meu propósito é levar a sério o sentimento de Calvino quando ele fala da doçura da predestinação, e buscar entender o que ele quis dizer com isso. Enquanto isso, desde sempre a predestinação tem despertado, sobretudo no meio protestante, (Arminio, 1560-1609), fortes objeções, e também não podemos deixar de tentar compreender a recepção do tema, que parece ter induzido um endurecimento progressivo de Calvino. No entanto, a predestinação é um dentre outros temas em Calvino, e as páginas dedicadas a este tema têm-se mostrado proporcionalmente menores do que as dedicadas a outros temas tratados em sua grande obra, as Institutas da Religião Cristã. A doutrina tem lugar nesse livro, junto com a da providência, e por derivação é colocada ao lado do tema da justificação. Por que então essa sensação de que com o passar do tempo, ao invés de amenizar, Calvino insiste em enfatizar a dualidade do paralelismo eleito/réprobo, no que parece ser a compreensão da relação inversa, mas talvez mais assimétrica, entre a ignorância teórica e a segurança prática? Isso é exatamente o que precisamos considerar. Minha ideia é de que há o sentimento de que seus adversários não chegaram a captar o que ele quis dizer, melhor dizendo, sobretudo, não o entendia e o expunham com má fé.

Não poderia continuar esse meu comentário sem antes trazer dois testemunhos pessoais. Participei alguns anos atrás dum debate na televisão com o simpático geneticista Axel Kahn, em que ele acusou Calvino de determinismo. A predestinação foi lançada ao ar por ele como destino supra-determinado, uma espécie de pré-determinismo. Se não for possível a liberdade de ação como se determinar a responsabilidade? Esta é a principal objeção de Armínio, e dos jesuítas que seguem Molina. De uma vez por todas: isso não é uma caricatura, nem um exagero, mas é a completa má-interpretação, a inversão da ideia de Calvino. No entanto, deve-se dizer que a idéia de "predestinação" se presta à inflexão (reversão). Ora, Calvino com seu pensamento foi contemporâneo e atuante de uma quebra de paradigma neste sentido. Estamos então prestes a ver um mundo passar de completamente vivificado e finalizado pela bênção divina para um mundo mecânico, aonde as forças são inertes, sem propósito, para em seguida, de um mundo desencantado, desenfeitiçado, para um arranjo simplesmente maravilhoso, o teatro da glória de Deus. O tema da predestinação, não se confunda com o da providência, teve que ser recebido num momento de grave conturbação, mas não tem nada a ver com os mecanismos do mundo, exceto, talvez, numa espécie de contraponto negativo, como se fosse um limite. E contrapor fatalidade à liberdade não faz sentido aqui: os tempos, a mecânica do mundo e a da eternidade dos decretos divinos, não estão situados no mesmo registro temporal que não possam se encontrar - Kant trabalharia justamente com esta ideia. A predestinação colocava um limite para o conhecimento, que foi substituída pela concepção da caixa vazia. Calvino escreveu em 1550:

“não me detenho muito em analisar o prejulgamento a que nos impõem nossos adversários de que nos postamos como os filósofos estoicos dos tempos passados, que submetiam a vida dos homens aos astros, ou imaginavam-nos submetidos ao que chamavam de labirinto de causas fatais. Deixamos essas reflexões para os gentios, pois a predestinação de Deus não tem nada a ver com isso." Des Scandales, Genebra: Droz, 1984, p.124.

Recordo que há muito tempo, ainda quando criança, passávamos um verão com nosso avô paterno, que vinha de uma família de calvinistas estritos, só que quando estava na escola normal se encantara por Victor Hugo, foi ali que ele me dissera: "Eu não posso imaginar a salvação que não seja universal". Ele me confessou o seu pavor e, assim, implicitamente, a sua recusa a um Deus severo, a um juiz divino que pudesse separar os seres humanos entre bons e os maus. E mais, recusava a ideia de alguns eleitos dentre uma grande massa indiferente e perdida. Não é ideia calvinista a de que são poucos os eleitos? E não é essa a razão de sucesso desta doutrina, em tempos de perseguição? Vamos por um momento nos colocar na pele dos europeus, em primeiro lugar dos franceses perseguidos por sua fé, tendo perdido tudo o que tinham, e muitas vezes até os entes mais queridos, e encontravam refúgio em Genebra. Pelo menos lá encontravam, na fortaleza inexpugnável da predestinação, a ideia de que as suas tribulações atestavam que eles eram escolhidos e parte do pequeno rebanho.

Essa recepção, no entanto, de ressonância imediata, sem dúvida, não deixa de perpassar a ideia de Calvino, mas está longe de ser uma sentença definitiva. Em seu comentário sobre De Clementiae de Sêneca, ele criticou o príncipe que governa pelo medo, sob o terror. Aqui, mais uma vez fica-se à beira do contra-senso, à beira da confusão de estilos. Calvino não deixa de separar a política da religião, mas se levanta contra o uso político da teologia apocalíptica do Juízo Final, a respeito do qual se mantinha muito cuidadoso. E ao voltar-se para o âmago propriamente teológico da doutrina, lá se encontrará um par de registros inseparáveis: por um lado, há a justiça de um Deus que condena nossa maldade como condição universal, e há por outro, o amor de um Deus que oferece incansável aliança de vida nova, que é a sua eleição incondicional. A vaidade e o zelo não podem encontrar espaço entre os dois, e nenhum poder eclesiástico ou civil pode daí extrair orgulho ou dividendos. Vou terminar essas preliminares com o relato da minha própria entrada no tema da predestinação. Bayle foi quem a apresentou para mim, em seu Comentário filosófico sobre as palavras de Jesus Cristo "obriga-os a entrar", hoje conhecido como o seu tratado Da tolerância. Tem-se precisamente a ideia de que existe em nós algo que não pode ser forçado. Bayle mostra o absurdo de punir alguém por não ter olhos azuis, ou por que não goste de badejo. Em matéria de fé e "consciência", com razão mais forte ainda, há uma parte em cada um de nós que pertence a Deus, e que ninguém pode colocar a mão. Algo indeclinável. Isto é predestinação, a libertação teológica, psicológica e política. E só porque pode ser vista como promessa não inteiramente cumprida, é que devemos abrir algumas bifurcações.



LIBERTAÇÃO TEOLÓGICA: RELEITURA DE CALVINO.

Num primeiro registro, a predestinação é uma espécie de destino superior, uma vocação divina tão caprichosa que é capaz de destruir todos os destinos. Em certo sentido a "salvação" significa a ruptura com as fatalidades. Motivo por que não há boas obras, nem boa doutrina, sequer boa igreja que nos possam garantir a salvação. As obras, as doutrinas, as igrejas são secundárias, e se uma ou outra coisa é colocada em primeiro plano vê-se que não passa de confusão a respeito da devida apreensão do Evangelho da sola gratia. Senão considerem-se os textos. Cito aqui a primeira edição das Institutas, em francês, de 1541, onde temos o Capitulo VIII intitulado "da predestinação e da providência de Deus" - na última edição a mesma seção encontra-se nos capítulos de XXI a XXIV . A esses textos principais, pode-se adicionar o texto de 1550, De Praedestination et Providentia Dei Libellus, e Advertência Contra a Astrologia, de 1549. Isso é o suficiente, e já é muito. E há que imediatamente distinguir-se, como fazem os títulos e conforme se observa acima: a providência do Deus Criador no que concerne a este mundo e seu arranjo, o arranjo de sua história além deste, e a predestinação do Deus Redentor que diz respeito apenas à salvação do sujeito diante de Deus, e do sujeito em relação apenas ao Reino de Deus: e este não é outro mundo em prolongamento, mas outro registro que suspende o registro dominante deste mundo. Calvino entra justamente no tema da receptividade: a aliança de vida não é pregada de forma igual, mas até onde é pregada "não acha a mesma receptividade". Não é o caso, acrescente-se, de terreno que não haja sido trabalhado. Ele pode ter sido trabalhado demais, educado demais, remexido demais. É certo que a falta de preparo faz com que o ouvido fique insensível, mas é igualmente certo que o excesso, para torná-lo muito sensível, também o imuniza – como sói ocorrer numa lavoura mecanizada. Em qualquer caso, é um fato aparentemente injusto, pois "nem padece dúvida de que esta variedade sirva... ao arbítrio da eterna eleição de Deus". É precisamente por causa deste fato aparentemente absurdo que nenhuma convulsão dolorosa serve de ocasião para explicarmos a eleição e a predestinação de Deus, disse ele. E de modo que esse é o nosso leve e suave prazer (Calvino, digo, referia à doutrina suave e mui saborosa ), entrar com confiança nos caminhos prazerosos de Deus!

Desde os primeiros parágrafos, a gente se sente tomado pelo amplo movimento de uma espécie de dupla reversão. Primeiramente, não devemos procurar saber, penetrar no segredo de Deus (este é o mesmo movimento que tivemos num texto anterior da Calvino muito antigo sobre a morte ). Calvino fala muitas vezes da “louca curiosidade” que lança os seres humanos num pântano ou num labirinto. Se há um labirinto do julgamento de Deus, um labirinto kafkiano não só pelo processo, mas pela lei, a graça por si própria, é a única maneira de sair do labirinto... ou de não entrar nele! A questão da predestinação fica simples por si só,

“...[é] a curiosidade dos homens [que] a torna assaz confusa e inclusive perigosa, visto que o entendimento humano não se pode refrear nem deter-se, por mais limites e termos que se lhes assinale, para não extraviar-se por caminhos proibidos e elevar-se com empenho, se fosse possível, (...) que se lembrem de que, enquanto investigam a predestinação, tentam penetrar nos íntimos recessos (santuário) da divina sabedoria, na qual, se alguém segura e confiantemente irrompe, (...) estará a adentrar um labirinto do qual não achará nenhuma saída. (...) [Que não] nos cause vergonha ignorar algo nessa matéria na qual [sim] há certa douta ignorância...” - (Institutas da Religião Cristã, em francês, Cap VIII, Paris: Belles Lettres Les, 1961, p.58-59 Volume 3. Este tópico será alvo de particular exploração filosófica por Descartes e Kant..)

Por outro lado, contudo, não devemos quedar em tal modéstia em relação a esta questão, para que prevenindo contra qualquer curiosidade, se retira a ponto de “ser sepultada qualquer menção à predestinação”, e assim venhamos incidir numa espécie de “negligente ingratidão”. Calvino aponta aqui, de modo extremamente presciente e judicioso, uma armadilha ainda pior do que a primeira. Posto que,

"não perscrutemos as coisas que o Senhor deixou recônditas em secreto; e [que] não negligenciemos as que Ele a pôs a descoberto, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra".(Ibid. p.61).

O conceito da Predestinação é então distinguido tanto do da Presciência como do da Providência .

“Chamamos predestinação o eterno decreto de Deus pelo qual houve por bem determinar o que acerca de cada homem quis que acontecesse. Pois ele não quis criar a todos em igual condição; ao contrário, preordenou a uns a vida eterna; a outros, a condenação eterna. "(ibid. p.62).

Assim definida, devemos reconhecer que a predestinação é de fato uma teologia cortante, e até mesmo assustadora. Alguns acham que a escrita é pesada, e assusta desnecessariamente. Talvez não possa ser de todo inútil, ainda que devamos criticar duramente o uso político do medo, contudo deve-se tomar cuidado para não cair noutro extremo do sentimento aguado e muito fácil que diz respeito à indiferença da benevolência geral do "Bom Deus". Certamente então todo o enigma é resolvido quando tudo fica claro, como Kierkegaard disse, quando “todas as dificuldades são aplainadas”!

"Nós confessamos que a ofensa é universal, mas dizemos que a misericórdia de Deus atende a alguns. Que então atenda a todos, dizem eles. Mas nós os replicamos que se assim fosse, porque ele também não se mostre justo e assim castigue a todos. Como eles não querem apoiar isso, eles não estão tentando remover o poder de Deus de mostrar misericórdia? Ou permitir que somente em determinada condição que ele desvie o seu julgamento?"(Ibid. p.83).

Mas eu acho que, para entender a idéia teológica da predestinação, devemos chegar à pragmática da sua recepção. É sempre uma questão de fundo em Calvino: que uso fazer de um texto, de uma idéia etc.? O que, para nós, se nos é permite fazer? Aqui, há um uso pastoral, uma comunicação “pastoral" evangélica porque se não sabemos quem é eleito, ou não, temos de ser afetuosos para desejar, para pressupor, a salvação de todos, e temos que agir como se todos fossem eleitos . O ponto teológico da doutrina é prático.



LIBERTAÇÃO ÉTICA E PSICOLÓGICA

Gostaria agora de mostrar como a ideia puramente teológica da predestinação pode ser por vezes vivida como uma libertação moral e pessoal. A tragédia no tempo de Calvino não era a tragédia da morte, enquanto decomposição do corpo, mas a da loucura trágica , enquanto desintegração da alma. Há tanto o fazer, saber e crer, conscientemente, deliberadamente, quanto o fato de que não temos mais certeza do que realmente queremos; dizemos ou fazemos. Sequer sabemos o "que" somos - não apenas diante da morte, mas da vida diante de Deus. É o problema moral da liberdade predestinada na tragédia de Édipo, à sombra de um deus do mal, e a realidade assustadora dos filhos pagando pelos pecados de seus pais, que reaparece aqui de modo rasgado como arguir a questão do sujeito singular, sua liberdade tola e terrível, e a fadiga do ser livre que se esfarela e se espalha.

Tento explicar. Há, claramente, em Calvino, o que é representante de uma era, uma angústia, uma sensação de asfixia, de estar preso (imagens do labirinto e do lamaçal): logo sucedida pela escapada, pelo esvaziamento, pela separação, pelo libertar-se. Mas no mesmo movimento existe a angústia da separação, do vazio, da queda no vazio, da desintegração, não há nada para se agarrar, ninguém com quem se reunir. O medo da loucura, não é simplesmente um sentimento de alma, é o horror de uma espécie de purificação impossível, somos levados através do labirinto das boas obras e da boa fé, onde se sente, no entanto, cada vez mais escravizado e condenado, com o sentimento horrível de ter que amar a Deus sob coação e engodo. A alternativa seria a loucura da liberdade que ocorre sob a lei feita subjetivamente, que acaba condenando o individuo à solidão do separado, do livre porém sem a ânsia de ser ancorado, impotente para sair de sua própria depressão. As reflexões de Lutero ou La Boétie apontam para o servo arbítrio ou para a servidão voluntária. Para além do gênio do mal de Descarte encontra aqui a leitura não apenas mais confiável, mas tremenda diante do medonho da predestinação - e se me fosse dado conhecer que estou incluído no plano de outrem? E se eu fosse o que não quero ser? se eu fiz o trabalho de outro? Quem sou eu, reflito de mim para mim mesmo, o que eu faria se estivesse completamente livre do olhar e do discurso do outro que me controla? Na verdade, é uma espécie de loucura, o desejo de ter a certeza de que sou eu mesmo quem decide e escolhe algo para mim, porém sabe-se que nunca de forma totalmente independente. Assim, se entra no círculo vicioso do medo de ser o que é – o cansaço de si mesmo.

A predestinação para Calvino é simplesmente a solução para este problema, e não se surpreende se alguém esquece a pergunta, a resposta que se tem se torna novamente uma questão. Isso é muito comum na história das idéias. Calvino conta a história da eleição, a partir da eleição do povo de Israel como uma dupla progressão na singularidade eletiva da aliança e na sua universalidade: o problema não expõe o dilema do grande rei, do profeta ou do herói trágico. Trata-se do problema de todos. O que ele chama de andar pelo medo, andar com desconfiança, é típico da conversão sem arrependimento. O “arrependimento” aqui é ainda aquele preocupar-se consigo mesmo, com a própria sombra, uma maneira de ver se a sombra o acompanha, se é que isso é mesmo uma sombra. A predestinação rompe com estas complicações. Nada pode afetar a salvação, há apenas o despojar de toda a pretensão de fazer ou merecer, ou até mesmo de saber; é uma questão de recebê-la quase inconscientemente, com gratidão, no momento em que se confia na graça de Deus. Tudo o leva a se submeter a Deus, tendo “a alma esvaziada de qualquer outra cogitação” que não o amor de Deus, e o "olhar para longe de nós mesmos" . Vou tocar no mesmo tom: a necessidade de esvaziar de qualquer preocupação consigo mesmo e com a sua própria salvação, descentrar-se, faz toda a diferença entre mim e os outros; entre mim e eu em outro momento da minha vida. Esta é a ideia da predestinação, há um ponto em mim, que talvez seja mais do que eu mesmo, e me escapa, não pertence a mim, que se desenrola como se não tivesse a ver comigo. A predestinação defende o desconhecimento de si mesmo. Como se a despreocupação fosse a ponta visível, mas o inconsciente de si desemboca num sentimento imenso e íntimo de eleição: Calvino pode vender seu direito de primogenitura, como quiser, por que ele não pode perdê-lo!

A economia psíquica tem necessidade de sinais da eleição? As boas obras, como bons frutos, são todos os sinais externos, mas que pode causar orgulho, e de alguma forma fazer com que se esqueçam o que eles são. Poderíamos, então, dizer que o sentido da vocação é um sinal interior, bem como o esforço de santificação. O sinal da fé seria a preocupação da própria fé, que nunca é garantida - é isso que Kierkegaard diz. Ao ler Calvino, no entanto, há a percepção de que não há necessidade dessa ansiedade permanente, não há necessidade desta multiplicação de obras para se ter segurança. Tudo se passa como se o verdadeiro sinal da graça fosse precisamente reconhecido em face da graça!

Só o desconhecimento da graça permite o desconhecimento da sua salvação, e do eu. O desconhecimento do eu comporta tanto a liberdade de se separar, de esvaziar, a de deixar de "receber" em uma parte do eu que espaça de qualquer domínio, quanto o compromisso que traz a existência em resposta a uma chamada mais forte do que você, mais forte do que as forças deste mundo, e restaura ao eu outra coerência.

Predestinação, uma parte do capítulo VIII das Institutas é dedicada a este tema, não desresponsabiliza o individuo, mas lança a responsabilidade para um segundo nível, o da responsabilidade de um individuo que atende o chamado para retroceder, o que equivale dizer de "quem" crê porque supõe que é, diante de Deus, dos outros, mas sem segurança, sem pára-raios. Sem a garantia de respostas prontas. Trata-se da constante reabertura da “caixa vazia”, a predestinação faz de nós adultos, e nos livra tanto da auto-confiança quanto da auto-preocupação.



LIBERTAÇÃO POLITICA

Sobre este registro muito mais, a predestinação mostra a dureza que foi quebrar a grande cadeia cósmica e política de então, e induzir uma sociedade mais liberal, individualista. A força da libertação moral, política e social de uma doutrina é por vezes sem preço. Em qualquer caso essa é a sensação que decorre da experiência da leitura de Bayle, quando ele mostra os direitos da consciência errante, da consciência que labora em erro, são também direitos do próprio Deus.

Encontramos isso em seu Comentário Filosófico sobre "Obriga-os a Entrar" , publicado em 1686 após a morte de seu irmão Jacó nas prisões de Luís XIV, após a revogação do Édito de Nantes, que pretendia proibir os huguenotes de deixar o reino, e forçá-los a se converterem ao catolicismo. Ali se encontra que qualquer verdade é verdade putativa, verdade de crença: "O homem pode crer que ele não está errado, não pode saber com certeza", e ainda "a quem quer que seja que a sua consciência seja bem iluminada se lhe permite avançar na verdade, a consciência errônea se nos permite crer ser isso a verdade "(CP p.522-a e 422-b). E é por isso que a obrigação de crer é absurda, porque ordenar que se subscreva com a mão não é o mesmo que ordenar à consciência que afirme: os indivíduos “antes suariam no meio da neve, tirariam antes da sua carne e dos seus ossos vinho e o óleo do que de dentro da alma lhes sairia tal ou qual afirmação”.(CP p.385-b). Porque não depende de nós que esta ou aquela afirmação se nos pareça verdade. A obrigação de aquiescer a uma crença é ainda mais absurda do que punir os indivíduos que não têm olhos azuis ou não goste de determinado molho (CP p.375-a), é ainda mais ridículo, ele escreveu que, se o Papa Adriano VI tivesse obrigado seus Estados a experimentar de badejo (CP p.384-a).

Ocorre que esta liberdade de consciência vem direto da doutrina da predestinação, que qualquer que seja a nossa "condição" o juízo final (eleitos ou condenados) que não sabemos, e ninguém pode pretender desvendar este “véu de ignorância" sem se lançar loucamente num labirinto mortal do julgamento final", como escreveu Calvino. Assim a criação divina da ordem social, política ou eclesiástica, está perdida, escondida ou esquecida, e esta deslegitimação é um ato político da maior importância histórica. A predestinação deixa em cada um uma "reserva" a qual ninguém pode por a mão. É por isso que a liberdade de consciência não depende nem clérigos, nem príncipes, nem mesmo dos próprios indivíduos, e o fato é que se depende de Deus somente: "Os direitos da consciência são diretamente os do próprio Deus" (CP p. 423-a). A consciência aqui tem um significado diferente na psicanálise, ou em projetos de conscientização ativistas: é simplesmente o que não depende de mim, nem me pertence.

No registro político mais uma vez vemos que a ideia da predestinação é uma ideia vazia, no sentido que é uma ideia insuscetível de pesquisar o conteúdo já que envolve um mistério complicado: é uma ideia dinâmica, ideia pragmática, uma ideia que implica em dar conta de sua recepção. "Parece que todos nós somos predestinados e não o sabemos, apesar disso...". Mais do que a propriedade privada e as liberdades ditas burguesas, eu acho que a lenta formação de um domínio íntimo, onde nem os poderes eclesiásticos, nem os poderes legais e políticos tinham o direito de entrar, desempenhou um papel importante na formação do que hoje chamamos de "sociedade civil". E parece-me útil recordar que o espaço para as luzes e para a transparência da discussão pública só é possível quando é limitado pela obscuridade e opacidade lançadas por este véu da ignorância final.

Na filosofia política, quando falamos de "véu da ignorância", pensamos, com John Rawls, na ideia de que as regras mais precisas devem ser estabelecidas por meio de temas colocados sob a hipótese do que pode haver por trás do véu de ignorância sobre as condições existentes – de ricos ou pobres, de homem ou mulher, de nativo ou estrangeiro, etc. Estas, então, são escolhidas com base no gradiente que vai dos mais favorecidos para os mais desfavorecidos! Mas esta ficção de fundamento pressuposto, também é encontrada em Rousseau e Hobbes, e é típica da política moderna. Uma das minhas suposições aqui é que Calvino desempenha um papel muito importante no desenvolvimento deste paradigma político. Eu não quero dizer que Calvino o inventou totalmente, há isso em outro lugar na República, de Platão, bem conhecida de Calvino, o "mito" da equitativa distribuição entre as almas de alguma forma por trás da cortina, existente no mundo. Mas de alguma forma há sempre um recomeço a cada ruptura, retomando-se promessas não cumpridas de Deuteronômio em termos de Jubileu, esta redistribuição era feita sete vezes a cada sete anos em todos os lugares, todas as chances era dadas a cada um, indistintamente. Tal é a pragmática da ideia de predestinação: quebrar todos os destinos por um destino superior e que ninguém conhece, em que se têm suficiente confiança e despreocupação quanto a graça para tranquilamente sair do labirinto, e colocar-se no mundo e diante de Deus tendo todos sempre e incansavelmente indistintamente uma nova chance, a caixa vazia. Sim, a predestinação é de fato uma ideia cortante.

Publicada no Boletim de Estudos protestantes, Genebra, outubro de 2004

(Publicado com a Devida Permissão do Autor Concedida em 14/11/2012. Site do Professor Olivier Abel: www.olivierabel.fr )

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

SOBRE O AMOR E OBEDIÊNCIA

É errado contrapor obediência ao amor. O amor conhece limites, mas transpõe limitações.

A delimitação ou ampliação de limites deve estar a serviço da liberdade com o prestigio da autoridade. Mas há limitações que confunde liberdade com libertinagem, autoridade com autoritarismo e há quem tenta fazer prevalecer seus gostos e preferências, muitas vezes frutos de frustrações causadas exatamente pelas limitações.

Virou moda ouvirmos críticos, ou até mesmo nós nos fazermos de críticos de outrem, nesse sentido, "certas pessoas amam, mas não obedecem"; ou pior "elas dizem que amam, mas não obedecem". “Pessoas só fazem coisas por diversão, aonde está a seriedade?”

Que passemos a pensar que biblicamente o amor precede a obediência. Não só precede, engendra, anima, inspira e produz (resulta) a obediência. A obediência é atitude de quem é livre, doutra sorte não é obediência é submissão.

Jesus, num contexto em que se faziam presentes fariseus, pessoas que "obedeciam", mas não amavam, esclarece a questão quando alto e bom som anuncia "quem tem os meus mandamentos e os obedece, esse é o que me ama”. Muito desconcertantemente simples queria dizer: todos que amam obedecem, mas, nem todos que obedecem amam.

Reparem bem que Ele não diz que aqueles que fingem ou dizem que obedecem ou mesmo obedecem, estritamente, nos mínimos detalhes, à risca, ao pé-da-letra, serão amados pelo Pai e a estes Ele lhes revelaria de forma sobrenatural, pelo Espirito Santo. Não é assim: caso contrário teria que se revelar aos fariseus de forma sobrenatural. Ele apenas ressaltou o fato de que a obediência, algo que começa no, e com, o amor depende além da viva disposição, do ouvir e entender instruções ou palavras de comando.

Nesse contexto, Judas ( não o Iscariotes) pergunta (aqui há um principio elementar e muito caro: quem não sabe, ou tem dúvida, antes de sair zunindo o que não sabe, pergunta a quem sabe...): "Senhor, mas por que te revelarás a nós e não ao mundo?" E Jesus, (este sabe), responde: "Se alguém me ama, guardará a minha palavra” - João 14:21 ss. Então é quem ama que obedece, o amor é o primeiro e indispensável passo da obediência. Pois acima de tudo o amor, além de sentimento, é mandamento "amai-vos uns aos outros como eu vos amei". Este é um fato. Mas tem outro.

Não disse que o verdadeiro amor conhece limites? A gente ao impor limites aos filhos por vezes os contrariamos. Não deixamos que eles façam coisas que venham lhes prejudicar e assim lhes ensinamos o que deve ou o que não deve fazer. Fazemos isso por que os amamos. Quanto aos adultos, se realmente os amamos, por vezes os pegamos fazendo algo para nós errado, os censuramos, e quando possível até os aconselhamos, os esclarecemos...

Mas, já não ocorreu de pensarmos que determinada pessoa está errada, quando nós que o estamos? Já não ocorreu de partirmos apressadamente para as correções e censuras quando nos deparamos com resistências, opiniões arraigadas, convicções quase tão, ou mais firmes quanto as nossas? Já paramos para pensar que às vezes, sem amor, nos propomos a demarcar limites com base em nossas ainda não admitidas limitações para amar?

Limitações, de toda e qualquer ordem, são mais ou menos, grandes ou pequenas, amarras que nos mantém presos no nosso mundo limitado por nossas fraquezas e por potencialidade sufocadas por ideias pré-concebidas, conhecimentos fragmentados, sentimentos mesquinhos, ignorâncias, superstições, vaidades... Quantas vezes tentamos impor limites com base nas nossas limitações para o amplo exercício do amor?

Limites são coisas objetivas inerentes a nós, ou colocadas de fora, impostos e permitidos por Deus para nos conter dentro das amplas "quatro linhas" de Sua vontade. Limitações são coisas estreitas, inconvenientes, mesquinhas, subjetivas e auto-impostas que podem ser quebradas ou ultrapassadas, ou mantidas, tolerados ou respeitadas, mas jamais devem tomadas como padrão para o estabelecimento de limites a serem impostos nos outros. Em suma, limites a gente respeita, já as limitações... O que fazer diante delas?

É um perigo não sabermos de nossas limitações, ou nos ufanarmos ou presumirmos sem limitações, ou que as nossas limitações não são tantas, e sairmos pontificando limites. Sabemos que a base segura de informação, a fonte de conhecimento é a Palavra de Deus, mas quantas vezes estamos tão seguros de uma interpretação até que alguém vem com uma interpretação diferente, o que nos deve reportar a um alerta do texto bíblico precioso de Provérbios 18:17: “o primeiro a apresentar a sua causa parece ter razão, até que outro venha à frente e o questione”.

É por isso que amor e obediência reclamam por liberdade. Tudo isso não parece papo de revolucionário: obediência a partir do amor... agora com liberdade? Isso é possível? Isso é o que Jesus ensina: “Se o filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” e Gálatas 5:1: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão”.

Parece que precisamos ouvir isso de novo, e de novo, no amor há limites, mas o amor não dever ser limitado pelas limitações humanas. A obediência rima com amor e com liberdade. Quem tem poder liberta, quem não o tem e pensa que pode, limita a liberdade, prende, tiraniza, e no limite nos impõe a ditadura, obriga-nos à cega obediência e obstaculiza o amor sem fingimento. Inspira o temor mas induz a hipocrisia.

Como ilustrar tudo isso? Limite, limitação, liberdade, obediência e amor. Limite e limitação, como diferenciar? Um atleta baixinho cismou de jogar basquete. Chegou cedinho na quadra, bate bola livremente pelas laterais, pelos meios e pelo garrafão. Espaço, tempo e meios, várias bolas, só para ele. Pode fazer o que quiser para encestar quantas bolas quiser: cesta de dois, cesta de três, enterradas... Não havia limite algum imposto. Ele podia lançar a bola de onde quisesse, usar o tempo que fosse necessário e do jeito que melhor entendesse. Mas, pobrezinho, estava cheio de limitações: baixa estatura, pouca força nos braços e má pontaria. Encestou? Não, ficou enrolado. No final do treino viu que mesmo sem imposição de quaisquer limites ele não podia atingir o objetivo do jogo. Ele simplesmente abandonou aquela modalidade esportiva.

O Rio Grande limita os Estados de São Paulo e de Minas. Em um ponto o rio é largo em outro é estreito. Mas na extensão de todo o rio há numerosas pontes que servem aos que visitam as suas “barrancas”, com todos os pontos turísticos e de pescaria. Num destes havia o costume de alguém lançar o seixo de um lado para atingir o outro. Precisa de um bom seixo, um forte braço e apurar uma técnica, pegar o jeito. Era uma brincadeira divertida. Todo mundo que ia para lá tentava o feito de estando num estado lançar o seixo noutro estado. E todos que conseguiam faziam a maior festa e incentivava os outros, “vai, que você consegue”. Todas as vezes que visitava o determinado ponto do rio, aonde ocorria a brincadeira, o rapaz franzino entrava na brincadeira e tentava, mas nunca conseguia. Um dia aborrecido, encontrou outro rapaz franzino que ao invés de lançar seixos, pescava, e falou: “Você não lança seixos, é divertido. Veja todo mundo se diverte lançando seixos, e você?”. O outro rapaz, que pescava, respondeu: “É muito chato lançar seixos...” E os dois foram papeando. Duas horas depois o discurso evoluíra: “É chato lançar seixos. Eu não gosto. Ninguém deveria gostar. Que mau gosto, vir para beirada do rio e ficar lançando seixos de um lado para o outro. Mas esse nem é o problema. Esse péssimo costume traz problemas ecológicos, faz barulho e assusta os animais, remove seixos e pedras da beira do rio e causam erosão. Além disso, é perigoso: alguém pode lançar um seixo grande e acertar a cabeça de alguém. Como é que pode esses egoístas se divertirem com isso?”

Tempos depois, havia no local uma grande placa que dizia: “É expressamente proibido lançar seixo de um para o outro lado do rio. Sujeito às penalidades da Lei”. Essa era a mensagem explicita. Implícita havia a seguinte: goste do quiser, use de sua liberdade para pescar e admirar a paisagem, mas obedeça a Lei: faça somente o que os rapazolas franzinos não acham chato!

Assim é com amor, pessoas que não amam são capazes de achar qualquer explicação, racionalização, por que não conseguem amar, relacionarem bem, ajustarem-se umas às outras. Quais são os problemas: limites impostos e descumpridos, exigências decorrentes destes limites ou limitações de nossa capacidade de amar?

Transpondo isso para a questão doutrinária, vida cristã. A gente sabe que existem divergências. Até quanto as aceitamos? São por causa delas que existem tantas denominações. Nem todos até numa mesma igreja local concordam com tudo. Há todo um capítulo no livro de Romanos, 14, tratando dessa questão.

Há questões difíceis de compreender, e as mais importantes são justamente aquelas que parecem fáceis e claras. Pessoas cometem erros de interpretação e não percebem. Mesmo em não havendo aparentes erros de interpretação há divergência decorrentes do conhecimento limitado de alguém em contraposição a uma compreensão mais critica, mais profunda, com consultas até aos originais da Bíblia, de outra.  Mas será que ainda assim justifica o direito de, nestes casos, ter certeza absoluta sempre? Agostinho, há mais de 1500 anos, ante um ponto muito polêmico comentou que “neste ponto deve haver erro do copista, ou uma tradução mal feita do original, ou sou eu mesmo que não consigo compreender...”

Por que então pessoas abusam do principio da autoridade. Mal disfarçam a tentativa de cercear a liberdade. O sábio jamais é autoritário.

Creio que um bom início de diálogo deveria começar não com o julgamento com sentença de condenação pronta, mas com a admissão de que “não estou conseguindo compreender dessa forma, como você compreende”. A resposta deve ser natural. Isso acontece. E porque? Deve haver bons motivos para se compreender de uma, e não de outra, forma, mas há uma carrada de outras boas razões para obedecer ao mandamento do amor, concedendo a liberdade de pensar aos filhos de Deus com a maior tolerância possível.

Boas maneira também decorrem do amor... Mas isso é mais coia dentro desse mesmo papo... Vai longe.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

CALVINISMO E JANSENISMO GRANDES ESTRUTURAS DOUTRINAIS - A essência e a existência

CALVINISMO E JANSENISMO


GRANDES ESTRUTURAS DOUTRINAIS

André Gounelle

A essência e a existência

Qual é a essência do calvinismo e do jansenismo?

Em 1903, em um artigo que marcou época*, Ernst Troeltsch magistralmente demonstrou que quando se tenta definir a essência dum fenômeno ou dum movimento histórico, por mais erudição e perspicácia que se empregue, é inevitável a tendência para o contestável, arbitrário e subjetivo. Qualquer método, por mais rigoroso, não permite escapar de aproximações, simplificações e até mesmo deformações. É o que facilmente se verifica nas nebulosas indefinições, nas polimorfias e nas fronteiras avaliativas que marcam o calvinismo, e talvez mais ainda, o jansenismo. Fato é que as melhores definições possíveis podem conter defeitos. Segundo Max Weber, citado por Lucien Goldmann, as essências ou os tipos não coincidem exatamente com a realidade concreta. Não existe calvinismo nem jansenismo em estado puro.

Nesse caso, a dificuldade aumenta tendo em vista o fato de que ambos negam energicamente possuírem essência própria e se distinguirem por traços específicos. De cada uma de per si rejeita, sequer querem ser apresentado, como escola teológica, corrente espiritual, partido eclesiástico, ou “uma opinião a ser provada”, dentre as outras. Propõem-se apenas a encarnar o cristianismo na verdade e na autenticidade deste, sem adição ou (im)precisões complementares. Os calvinistas e jansenistas recusam os qualificativos que lhes são atribuídos; declaram ensinar que não praticam outra coisa senão o Evangelho comum a todos os cristãos. A universalidade cristã deles de princípio se reveste de identidade confessional específica tão-somente por causa das deformações que alguns impõem, respectivamente, à mensagem evangélica e ao ensino católico. Só as flagrantes aberrações dos seus adversários que contam, e essas dão a estes a fisionomia que justifica conferir-lhes o rótulo. De certa maneira, a existência contradiz a essência de ambos. Melhor dizendo, eles existem, paradoxalmente, contra a sua vontade, contra a sua profunda natureza. Existem devido à crise que se instala e exige que eles se agitem para manter o cristianismo dentro da sua cristandade. O calvinismo e o jansenismo não querem ser um ramo do cristianismo, mas o cristianismo “tout court” (em termos, resumido, conciso...); e não se trata aqui de literalmente de “tão curto”, tão mutilado, por exemplo, das suas exigências, nem também tão alongado ou mesclado como essas misturas de café que mantendo a aparência de café, não trazem mais a substância do verdadeiro café. “Tout court”, “em termos”, por que a eles próprios se lhes conferem a doutrina pura ou a espiritualidade específica que acaba sendo algo capaz de minar deles o que tem de mais profundo: a consciência de que a essência deles não é mais do que a essência ou identidade cristã, de que não passam das únicas testemunhas e dos únicos defensores do Evangelho em sua pureza e sua radicalidade.

Para esboçar esta perigosa e delicada comparação entre dois movimentos que têm por ambição e projeto nada menos do que não se distinguir, mas se confundir com o cristianismo em geral, restrinjo-me a dois livros emblemáticos, a saber, as “Institutas da Religião Cristã” de Calvino e o “Augustinus” de Jansênio, embora esteja consciente do fato de que o calvinismo não está tão reduzido às “Institutas” assim como o jansenismo ao “Augustinus”. Ambos os livros têm diferenças formais importantes; penso que não estou sendo parcial ou simpatizante por achar que as Institutas têm mais estilo e inspiração do que o “Augustinus”, o qual a sua aplicação curta é mais conhecida do que sua leitura. Em qualquer caso, eles têm em comum não serem, é claro, os únicos escritos de seus autores, mas o livro da vida dos seus respectivos escritores. De 1536 a 1564, Calvino não deixou de retomar às Institutas, complementando-as, redesenhando-as ou mesmo corrigindo-as, mediante sucessivas edições (os últimas apresentadas postumamente), um pouco como Montaigne em relação aos seus “Ensaios”. No que se refere a Jansênio, durante vinte e dois anos, ele escreveu, desenvolveu com paciência e perseverança, o “Augustinus”, que não apareceu senão uns poucos meses depois de sua morte, como se a realização deste trabalho marcasse o fim de uma vida, tendo com ele alcançado a sua meta e missão. Muitas coisas separam o Reformador de Genebra do Bispo de Ypres. No entanto, um e outro são grandes leitores de Santo Agostinho, a quem Calvino citou mais de três mil vezes nas “Institutas” e de quem Jansênio quis ser o fiel intérprete. Mais e melhor do que qualquer real ou alegada influência do um sobre o outro, é esta dependência comum que explica a existência de certa quantidade de proximidades e parentesco entre suas obras. Em geral, em uma abordagem tipológica do caráter inevitavelmente aproximativo e simplificador, podemos dizer que estas duas obras expõem e defendem um entendimento radical da revelação e da graça, e radical aqui significa a exclusão de qualquer outro elemento. Só Deus sabe como falar de Deus; nenhuma fonte complementar permite o saber ou o compreender divino; fora da revelação não há nada senão erros e escuridão. Só Deus realizou a salvação, não há mérito nenhum, nenhum esforço da nossa parte ajuda, porque além da graça, não há nada que não seja pecado.

Vejamos dois pontos a seguir.

A RADICALIDADE DA REVELAÇÃO

Começo pela revelação. Todas as teologias cristãs, incluindo as mais racionalistas e mais humanistas, propõem-se basear na revelação divina. Conhecemos Deus apenas porque Ele se manifesta, intervém, fala e age na história humana. Se continuasse a ser passivo, ocioso e silencioso, não teríamos nenhum meio para descobri-Lo; não poderíamos dizer nada. Ele nos seria absconso e continuaria a ser desconhecido de nós, tal aquela divindade apresentada de acordo com o capítulo 17 do livro dos Atos dos Apóstolos, a quem os atenienses tinham erigido um altar. A teologia cristã depende de um ato do falar que vêm de Deus, cuja iniciativa é d’Ele.

O calvinismo e o jansenismo se mostram, aqui, radicais na concentração na revelação nas Escrituras Sagradas e se recusam a procurá-la noutro lugar. De certo que Deus se manifesta, na natureza, na alma ou no coração humano. Isso é sensível, mas, haverá um momento, em que Ele realmente se nos dará a conhecer sobre Ele mesmo. A razão e a intuição, a filosofia ou a experiência fazem-nos descobrir um sem numero de coisas corretas acerca do mundo; em contrapartida, não trazem suficiente o conhecimento autônomo, ou mesmo auxiliar e complementar, sobre Deus. Não se trata de desqualificá-los completamente, ainda mais em termos de religião. Pode e deve servir de instrumentos, para compreender ou para interpretar precisamente os escritos revelados. No entanto, não constitui em fonte independente, tampouco em instância crítica. Têm valor apenas se forem subordinados totalmente e inteiramente sujeitos aos documentos da revelação.

Assim, nos primeiros capítulos do livro 2 do “Augustinus”, Jansênio explicou que a teologia se baseia na memória, autoridade e tradição. Ele deriva isso por citações, não por raciocínio. A referência a seguir prevalece em relação a isso visto que em seguida apresenta argumentos mais fortes. A teologia deve deixar de lado sutilezas da escolástica que decorrem do pelagianismo e são permeadas de pensamentos metafísicos aristotélicos que a impregna de erros. Para Calvino, o ser humano tem um conhecimento de Deus "naturalmente enraizado no seu espírito" e "o poder de Deus cintila tanto na criação quanto no contínuo governo providencial do mundo...*. Porém, o pecado sufoca e corrompe o conhecimento de Deus e os desejos de nossa natureza. Fazem-nos cegos para que não discirnamos ou deficientes visuais a ponto de discernirmos apenas em penumbra da claridade do pleno dia. É por isso que Deus nos tem dado a Escritura por "guia e mestra". Ela nos fornece o "autêntico" registro da verdade divina. "Ninguém pode ter ao menos um pequeno gosto pela a sã doutrina”, escreve Calvino, “... a compreensão humana ...que de forma nenhuma pode chegar a Deus", a menos que ingresse na "escola da sagrada Escritura". A Bíblia ensina-nos o que é Deus e o que nós somos. É a única base que temos para toda a nossa teologia, não tem outra fonte, e é colocada sobre qualquer outra referência e norma.

Isso não significa que a fé é reduzida a um intelectualismo escriturístico, e o crente necessite apenas do estudo das Escrituras. Ele é necessário, mas não é o suficiente. Para o encontro com o Deus vivo, deve ter algo mais: a sua presença ativa nas nossas vidas, o que Calvino chamava de “testemunho interno do Espírito*. Jansênio falava de "caridade flamejante" que "purifica e ilumina o coração do homem e o faz penetrar nos segredos de Deus contido nas Sagradas Escrituras"*. Assim, a chama da caridade e a luz do conhecimento mutuamente "se excitam e se engendram" de molde a levar a alma à plenitude da fé. Para retomar as categorias do calvinismo escolástico*, as Escrituras se nos mostra intelectualmente como Verbum Dei, a fala de Deus, mas não se faz percebida existencialmente como Vox Dei, voz de Deus. Para ouvir e acolher a sua fala, o verbum, o que também se encontra na Bíblia este deve ser conjugado com a vox que se faz ouvir pelo Espírito. O verbum sem a vox não altera e nem transforma; ele pode muito bem fazer-nos doutores, e em ciência, "frívolos e inúteis", escreve Jansênio, duas palavras que Calvino emprega também, mas não em crentes, e tampouco em verdadeiros teólogos. Por outro lado, referir-se à vox independentemente do verbum rebaixa-a a uma espécie de iluminacionismo que confunde emoções e intuições com revelação. Deus é real e é vivo: real, por que é conhecido pelas Escrituras; vivo quando se faz conhecido ao coração. A piedade fecunda o estudo do texto da revelação e o estudo do texto nutre a piedade. Se um dos dois elementos falha, a teologia se desvirtua.

Ao lado dessa semelhança estrutural entre Calvino e Jansênio, há uma diferença substancial. Para o Reformador de Genebra, as Escrituras que se revestem autoridade são tão-somente as do Antigo e Novo Testamento. Para o bispo de Ypres, incluem-se nelas também os Padres da Igreja, e se estendem à Tradição. Há que se prevenir, aqui, as abusivas e caricaturais simplificações que se fizeram correntes nas controvérsias entre católicos e protestantes. Calvino não nega o valor teológico e o interesse espiritual da tradição*. Ele refere-se a ela abundantemente, e diz que não se deve afastar dela, senão após intensa reflexão, acercando-se de muitos pareceres, quando então boas e sólidas razões nos forçarem a isso. Caso contrário ela não deve ser desprezada, nem negligenciada. Ele a vê útil como auxiliar da revelação, e um comentário valioso para a compreensão do ensino bíblico. No entanto, ela não está habilitada a determinar o significado da Palavra. Devemos sempre confrontar a interpretação que ela nos propõe com o texto bíblico; a exegese examina-a, avalia-a; confirmando-a ou refutando-a. Por seu turno, Jansênio não coloca os Padres no mesmo plano que a Bíblia. Ele afirmava claramente a superioridade e preeminência desta. Mas por vezes tende a dar aos escritos de Santo Agostinho autoridade comparável a da Bíblia, ele chega a dizer que não seria inferior à "primeira depois dos escritos canônicos" e acreditava que ele tenha aprendido de São Paulo sua doutrina. Jansênio não defendia a primazia da Bíblia sobre a tradição. No entanto, considerava que a tradição indica o significado exato dos escritos bíblicos e a Igreja decide a sua justa interpretação. Isso está na linha assinalada pelo Concílio de Trento * que decretou:

“Ninguém, confiando em sua própria sabedoria, se atreva a interpretar a Sagrada Escritura em coisas pertencentes à fé e aos costumes que visam a propagação da doutrina Cristã, violando a Sagrada Escritura para apoiar suas opiniões, contra o sentido que lhe foi dado pela Santa Amada Igreja Católica, à qual é de exclusividade determinar o verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Letras; nem tampouco contra o unânime consentimento dos santos Padres”.

Esta formulação contrasta-se com a Confissão Reformada de La Rochelle* (1559-1571), escrita a partir de um projeto Calvino, que diz:

“Nem antiguidade, nem costumes, nem a multidão, nem a sabedoria, nem os julgamentos, nem os acórdãos, nem éditos, nem decretos, nem concílios, nem as visões e milagres, devem ser opostos… à Escritura Sagrada… pelo contrário todas as coisas devem ser examinadas, reguladas e reformadas de acordo com ela".

Em 1688, o genebrino Francisco Turrentino* assim comentou:

"deve ser grande a autoridade [dos ensinos] da Igreja…; continua a ser, contudo, inferior à autoridade da Escritura. Esta a regra, aquela a coisa regrada… A esta se faz necessário dar fé diretamente e absolutamente; aquela deve ser julgada e crida na medida em que esteja de acordo com a Palavra [bíblica] “.

À luz dessas citações, pode-se dizer que Calvino representa efetivamente a maneira protestante, e Jansênio a católica, de articular a Bíblia com a tradição. A sua proximidade não diminui nem atenua a diferença confessional que os separa.

A RADICALIDADE DA GRAÇA

Após a revelação e a Escritura, passa-se para o segundo ponto que trata da graça e da salvação. Todas as teologias cristãs vêem a salvação como obra de Deus, como dom do seu amor. O homem não pode conseguir nada totalmente sozinho; livrar-se de seus pecados por suas próprias forças; limpar-se de sua culpa por sua piedade ou suas virtudes. Ele precisa de Cristo. Sobre este ponto, o acordo é quase geral. O debate se centralizará nas condições as quais Deus nos concede a sua graça: Ele pede uma participação ou uma contribuição pelo ser humano, exige que ele colabore com sua salvação com alguns méritos ou o salva livre e totalmente, sem qualquer concurso de sua parte? Para usar uma imagem tomada emprestado de um amigo hinduísta (e o Hinduísmo tem lá também suas controvérsias sobre a graça): a situação do crente é comparável a de um gatinho que a sua mãe agarra pelo pescoço com os dentes para livrá-lo do perigo que o ameaça, ou é a de um macaquinho que deve se agarrar aos ombros de sua mãe enquanto ela se afasta do perigo? A esta questão, crucial para o desencadeamento da Reforma protestante, o calvinismo (sobre este ponto em pleno acordo com o luteranismo) e a doutrina jansenista dão uma resposta radical; somos salvos sola gratia, com a exclusão de qualquer cooperação humana. Não só a fraqueza inerente do ser humano, mas também o domínio do pecado, que nos corrompe, sem exceção, e totalmente, nos tornam incapazes de, por nós, pensarmos alguma coisa para a nossa salvação: tudo deve vir de Deus. Como salienta Pascal em seu “Mistério de Jesus”, Cristo opera a salvação dos seus discípulos enquanto eles estão dormindo, enfatizando a passividade humana. Ele opera a nossa conversão, em prol de nossa salvação, sendo trabalho d’Ele, com Ele se completa e realiza, de acordo com uma expressão de Lutero, "em nós e sem nós *.

Trata-se de temas claramente agostinianos. Em seu “Tratado Sobre a Predestinação”, de 1566, Calvino escreve: “Quanto a Santo Agostinho, ele está de pleno acordo com tudo o que é possível fazer para se ter uma confissão a respeito da matéria, seria para mim suficiente que a compusesse com testemunhos extraídos dos seus livros”. Calvino lê tão cuidadosamente Lutero que, recorda-se, antes de sua ruptura com Roma, pertencia à ordem dos agostinianos. Por seu lado, Jansênio, o próprio título de seu livro o indica efetivamente, propõe-se apenas expor a doutrina do bispo de Hipona. Importa, no entanto, sublinhar, que numerosos teólogos de grande influência marcados por forte agostinianismo desenvolvem temas semelhantes. Isso não traduz afinidade específica entre Calvino e Jansênio, mas o retorno a uma fonte e orientações largamente compartilhadas no cristianismo ocidental, nem tanto como através de Agostinho, mas estes temas enraízam-se diretamente nos textos apostolo Paulo. Sempre encontrando resistências, porque contradizem lógicas fortes e invertem o orgulho humano. Hoje isso tem sido exposto freqüentemente de modo suavizado, o que não ocorre nem com Calvino nem com Jansênio.

Há, no entanto, desacordos, que não se referem tanto ao arcabouço global de certos elementos desta estrutura, mas à maneira como a graça age. Na avaliação que ele fez em 1620 nos cânones do sínodo reformado ocorrido no ano precedente em Dordrecht, Jansênio assinala a divergência mais importante. Trata-se da famosa questão da certeza salvação e da inamissibilidade da graça. Para o calvinismo, a doutrina da predestinação cria uma tranqüilidade e uma certeza internas totais. Com efeito, declara o Cânon XI de Dordrecht,

“Exatamente como o próprio Deus é sumamente sábio, imutável, onisciente, e Todo-Poderoso, deste modo a eleição feita por ele não pode ser nem suspensa, nem alterada, revogada, ou anulada; nem seus escolhidos podem ser lançados fora, ou seu número ser reduzido”.

O crente sabe que dado que foi eleito, escolhido, a sua salvação se efetivará, apesar das suas insuficiências e dúvidas eventuais. No século dezenove, o pastor calvinista César Malan dizia a seus paroquianos: “é ofender a Deus implorar-Lhe por uma salvação que já foi realizada”. Mais recentemente, o novelista protestante André Chamson conta que um dia, ao confessar à sua avó muito piedosa que tinha perdido a fé, em vez dela se desolar, como era de se esperar, ela lhe respondeu: “Isso não tem nenhuma importância, Deus saberá reencontrá-lo”. Desde o dia em que provo a fé, e sinto na minha vida a graça, estas jamais me abandonarão, mesmo quando creio desaparecerem ou serem destruídas. Pelo contrário, para o jansenismo, a liberdade soberana de Deus implica que Ele pode retirar a graça que um dia atribuiu. Também, não se pode nunca ter a certeza de sua salvação e é necessário sempre e incessantemente solicitar de modo que se lhe conceda. Não digo que qualquer reformado seja desprovido de angústia e que pelo contrário, esta aflige os jansenistas, o que seria falso. Mas pode-se pensar que a doutrina da predestinação, como os reformados a compreendem, tende a abolir a angústia existencial, enquanto que no jansenismo, ela antes a favoreceria. Para o calvinismo, sua salvação é um negócio que Deus governa do qual não tem com que se incomodar. Para o jansenismo, neste ponto mais próximo da sensibilidade luterana, salvação é um negócio que Deus governa a cada instante e que por conseguinte nunca é adquirida. Esta diferença teológica provoca evidentemente espiritualidades diferentes, mais serena em uns, mais trágica em outros, a primeira marca o estilo mais reformado, a segunda o mais fundamentalmente católico. Ai também, a proximidade não apaga a diferença confessional.

No entanto, podemos argüir se esta questão, à primeiro vista acessória, da inamissibilidade da graça não se refere a uma diferença mais profunda que lida com natureza ou da essência da graça. Para os protestantes, pelo menos em princípio, "graça" refere-se à palavra de Deus que para mim significa o meu perdão e a minha salvação. Esta palavra não altera, em qualquer caso, num primeiro momento, o meu ser. Ela transformou a minha situação, no sentido que Deus decidiu não levar em conta o meu pecado, mas não eliminá-lo. A palavra que me transmite graça não me faz justo, ela me declara justo*. O crente, de acordo com a expressão de Lutero, é "simul justus et peccator”. Então, num segundo momento, será o processo de santificação, que via mudar o meu ser. No Catolicismo, a graça evoca o pouco do poder divino que está em mim, que me permeia e faz-me tornar em outro. A justificação não é um ato declaratório e, posteriormente, seguem as conseqüências ontológicas; tem o caráter essencialmente ontológico. Além disso, o assunto que trata do justo que compromete a graça e que causa a queda em pecado tem sua pertinência. Ele tem menos na perspectiva protestante: Deus não se restringe sua ação à palavra que declara, e a justiça continua sempre mesmo quando somos pecadores. No entanto, os calvinistas usam "graça" tanto para a justificação e quanto para a santificação, embaralha as coisas e impede que se distingam nos textos os sentidos do termo que se utilizam distinta e claramente os protestantes ou os católicos.

OUTROS TEMAS

Gostaria de para terminar assinalar rapidamente dois outros temas que uma comparação entre as Institutas e o Augustinus não põe apenas em destaque, mas ao mesmo tempo aproximam e separam profundamente o calvinismo e o jansenismo.

O primeiro tema diz respeito ao sacramento. Aqui, como mostra Pascal no capitulo dezesseis das suas Provinciais, a oposição é radical. Para o jansenismo, na linha Concilio de Trento, o sacramento efetua, opera a presença Cristo, a hóstia é o corpo de Cristo. Para os reformados, o pão e o vinho assinalam esta presença, não a conferem, mas, por um sinal sensível, fazem-na percebida na comunhão outros fiéis. A tradição reformada, que neste ponto se separa de Calvino e herda mais de Zwinglio, não se defende a freqüente comunhão, mas por razões muito diferentes de Arnauld. Para Arnauld, importa preparar-se bastante para a comunhão porque há o coroamento, o ponto que culmina a vida cristã, aonde Cristo se dá a nós. Não é necessário, por conseguinte tomá-lo demasiado freqüente e inconsideradamente, sem purificação suficiente para tornar-se digno da vinda substancial de Deus a nós. Para os reformados, a comunhão representa um meio pedagógico, um apoio de que temos necessidade devido à nossa fraqueza humana. Não é necessário abusar deste instrumento de modo a que não se embote e deixe de operacional. Assim como a celebração de uma festa nacional ajuda o sentimento de unidade dum povo, mas que não preencheria esta função se tivesse lugar toda semana, do mesmo modo o sacramento, tomado demasiado freqüentemente, perde do seu efeito; não testemunha mais com a mesma intensidade da presença Cristo em nós. A escassez relativa da prática sacramental enraíza-se numa lógica fundamentalmente católica e de outra forma numa atitude tipicamente reformada.

O segundo tema que menciono mais brevemente é a maneira cristã de viver. O calvinismo e a doutrina jansenista têm em comum a preocupação com a recusa da conveniência, o ajustamento e o compromisso com a moral, ou a falta de ética do mundo, e desenvolvem uma ética bastante austera, legalista e puritana. No entanto, eles não o fazem da mesma maneira. O jansenismo favorece uma ruptura, retirada, isolamento; os religiosos e solitários se separam, rompem com o mundo, e o que devem fazer os cristãos. O calvinismo defende, pelo contrário, o que Max Weber*, chamava de "ascese laica". O cristão é chamado a permanecer ali, no mundo, a trabalhar mantendo certa distância, mas com a presença que marca uma diferença; ele “usa o mundo como se não fosse do mundo” para parafrasear uma fórmula paulina. Acumularam riqueza, sem desfrutá-la. O resultado é um comportamento social muito diferente.



Tenho consciência que ao apresentar este esboço não fiz mais do que recordar coisas bem conhecidas e me detive em generalidades. Trata-se apenas de uma introdução, banal e despretensiosa como todas as entradas de matéria. Espero que o nosso colóquio possa permitir precisar, retificar, aprofundar qualquer coisa que talvez possa abrir novas perspectivas.

André Gounelle

Chroniques de Port-Royal, 1998, Port-Royal et les Protestants

Notes :

* "Que signifie essence du christianisme" ?" dans Œuvres, vol.3, Cerf et Labor et Fides, 1996.

* Institution chrétienne, Labor et fides, l. l, ch. 4 et 5.

* Institution, l.1, ch.7, § 4 et 5

* Augustinus, l. 2, ch. 7.

* Cf. G. Bédouelle et B. Roussel, Le temps des Réformes et la Bible, Beauchesne, p.311.

* Voir M. Réveillaud, "L'autorité de la tradition chez Calvin", Revue Réformée, 1958, n°34.

* Quatrième session de 1546; traduction de G.Dumeige, La foi catholique, l'Orante, p.82.

* Confessions et catéchismes de la foi réformée, Labor et fides, p.116.

* cité d'après P. Maury, "L'unité de l'Eglise au XVI° siècle et aujourd'hui", Foi et vie, mars-avril 1959.

* M. Luther, Œuvres, Labor et Fides, vol. 2, p.205.

* P.Mélanchthon, Apologie de la Confession d'Augsbourg, § 143, in A. Birmelé et M. Lienhard (éd.), La foi des Eglises luthériennes, Cerf, Labor et Fides, p.135. Cf. J. Calvin, Consensus Tigurinus, art 3, in Calvin homme d'Eglise, Labor, p. 134.

* Cf. L'éthique protestante et l'esprit du capitalisme, Presses pocket, p.92.



sexta-feira, 20 de julho de 2012


E se os presbiterianos mudarem de posição em relação à ordenação feminina não deve implicar que necessariamente devam mudar a posição em relação à ordenação gay?

Definitivamente NÂO!

Sabe-se que um dos argumentos mais comuns ouvidos nos últimos tempos dos proponentes da ordenação gay é alguma coisa assim:

Os presbiterianos antigamente se opunham à ordenação de mulheres com base na Bíblia. Mas apesar do ensino bíblico contrário, agora eles ordenam mulheres. Assim será com a ordenação de gays e lésbicas. Com o tempo se convencerá que se devem ordenar gays. É inevitável.

Essa palavra é apropriada pelos que esposam posição contrária à ordenação feminina e utilizada até para intimidar os favoráveis à ordenação de mulheres. Chegam ao ponto de vaticinarem que um expediente deve seguir-se ao outro, quando muito não imediatamente, mas seguramente a certo prazo.

De certo modo, superficialmente tais argumentos da analogia e do perigo parecem convincentes. É verdade que os presbiterianos historicamente se opuseram à ordenação de mulheres, mas agora eles as ordenam em várias partes do mundo.

Façamos uma tentativa de situar a questão, como vista antigamente e hoje em dia. Antigamente, é fato, toda a família de igrejas reformadas e presbiterianas não aceitava a prática. As primeiras a aceitarem foram as igrejas que abraçaram uma base confessional mais ampla e admitiram uma teologia mais avançada. Seria até correto constatar que as igrejas presbiterianas que admitem coexistência com o liberalismo teológico foram as primeiras a admitirem a ordenação feminina. Entretanto, nos EUA, por exemplo, não é apenas a PCUSA quem aceita a ordenação feminina, juntamente com as igrejas reformadas historicamente mais progressistas, mas a Igreja Presbiteriana Evangélica – EPC e a Igreja Cristã Reformada da America do Norte – CRCNA passaram ultimamente a adotarem a prática. Na França não só a Igreja Reformada da França é adepta da prática mas a denominação historicamente não identificada com o pluralismo teológico, mas decididamente “reformada confessante”, abriu-se recentemente. E esse fenômeno tem sido repetido mundo afora.

Também é correto informar que há denominações presbiterianas majoritariamente avessas à prática dentre as quais no contexto norte-americano temos as pequenas porem não inexpressivas, PCA e OPC, que juntamente com outras minúsculas denominações presbiterianas e reformadas (essas pequenas e inexpressivas...) rejeitam a ordenação de mulheres.

É certo que vemos nossa cultura se movendo ràpidamente no sentido de normalizar a homossexualidade. Essa tendência não há dúvidas acompanha a de rejeitar certas barreiras que se opõe à participação da mulher no mercado do trabalho ou mesmo de certos redutos culturais exclusivamente masculinos. Isso tem preocupado com razão a muitos presbiterianos. De fato, estamos convencidos de que é irreversível o fato de que dentro de tempo relativamente curto haverá denominação presbiteriana, ou um grande grupo que dentro dela, ordenando gays e lésbicas.

Mas a analogia entre a ordenação das mulheres e a ordenação de homossexuais ativos é algo muito falho. É perfeitamente lógico para uns endossarem a ordenação das mulheres e se oporem à ordenação de homossexuais ativos.

Há uma razão muito simples para isso. O “problema feminino” tem a ver com a questão de incluir ou excluir pessoas com base em sua identidade. As mulheres foram impedidas do exercício do ministério ordenado, não por que tenham feito ou deixado de fazer algo, mas simplesmente por causa de seu gênero. O “caso dos gays”, ao contrário, é acima de tudo por causa do seu comportamento, e não por causa de identidade.

Por enquanto, por exemplo, na Igreja Presbiteriana do EUA (PCUSA), uma pessoa com uma orientação homossexual não está impedida de ser ordenada se essa pessoa prometer viver uma vida casta. É somente a intenção da pessoa de se envolver com o comportamento homossexual que a/o proíbe de ser ordenado(a).

Além disso, talvez o mais importante, a analogia entre a ordenação das mulheres e a ordenação dos gays é falha porque implica que o ensino bíblico acerca de mulheres no ministério é mais ou mais menos similar ao ensino bíblico sobre os gays no ministério. Isso é raso, totalmente falso e comprometedoramente desonesto. Pior: isso implica em ignorar as enormes diferenças entre o ensino bíblico sobre as mulheres e o ensino bíblico sobre os homossexuais. Permita-se explicar.

O argumento bíblico contra a ordenação de mulheres depende primeiramente de três textos do Novo Testamento: I Coríntios 11:2 - 16 (véu das mulheres); 1 Coríntios 14:34 - 35 (silêncio das mulheres); 1 Timóteo 2:11-15 (silêncio das mulheres). Os oponentes da ordenação das mulheres freqüentemente apontarão Efésios 5:21- 33 (submissão das esposas aos maridos) e Genesis 2 (criação secundária das mulheres) para apoiar sua posição, tanto quanto também aduziriam a escolha de Jesus de doze homens como seus discípulos mais íntimos. E ai encerra o argumento.

Ora, por sinal, quem admite a ordenação feminina, crê que todas estas passagens bíblicas, quando corretamente compreendidas, ao invés de combater a ordenação feminina, na verdade a podem apoiar! Mas, há que se admitir que, superficialmente, I Coríntios 12, I Coríntios 14 e I Timóteo 2, aparenta opor-se a esta prática.

Contudo, deixando por enquanto de lado a exegese e hermenêutica, mais acurada delas, essas passagens mencionadas não é tudo o que a Bíblia tem a dizer sobre as mulheres em posições de autoridade no Reino de Deus.

É inescapável atentar-se para muitas passagens que retratam mulheres em posições de autoridade ou fornece sustentação teológica para esta perspectiva. Seguem algumas dessas principais passagens:

Gênesis 1:26-28 – O homem e a mulher foram criados como imagem de Deus; ao homem e à mulher são dados o mandato de encher a terra e de dominá-la.

Gênesis 2:18 - A mulher é criada como “ajudadora” do homem. A palavra hebraica ‘ezer, para “ajudadora” quase sempre se refere a uma pessoa mais forte, e, no Antigo Testamento, geralmente se aplica a Deus.

Juízes 4-5 – Débora foi uma profetiza e juíza de Israel, com óbvia e divinamente endossada autoridade sobre homens israelitas.

Lucas 8:1-3 – Jesus tinha muitas mulheres entre o seu séquito de discípulos.

João 20 – Jesus ressurreto escolhe uma mulher para ser a primeira “evangelista” a dat testemunho de sua ressurreição.

Atos 2:17 - 18 – No cumprimento da profecia de Joel, o Espírito Santo é derramado sobre homens e mulheres, e indica-se que as mulheres profetizariam.

Romanos 16:1-2 – Febe é apresentada como “ministro” (Gk. diakonos), alguém cuja autoridade deveria ser respeitada pela igreja de Roma.

Romanos 16:7 – Júnias é citado junto com Andrônico como proeminente apóstolo.

I Coríntios 7:4 – A esposa tem autoridade sobre o corpo de seu marido, tanto quanto ele tem autoridade sobre o corpo dela.

I Coríntios 11:5 – Mulheres oram e profetizam na igreja.

Filipenses 4:2-3 – Evódia e Síntique são lideres na igreja de Filipos e cooperadores de Paulo.

Tito 2:3 – Mulheres idosas “ensinam o bem” ou são “mestras do bem”.

Apocalipse 2:18-29 – A igreja em Tiatira aceita uma mulher como profeta e mestre. Essa aceitação nunca é criticada e sim o conteúdo de seu ensino.

Naturalmente, os aderentes da abertura para a possibilidade da ordenação feminina poderiam apontar muitas outras passagens que, na opinião deles, apóiam o ministério feminino, e conseqüentemente a sua ordenação. E, naturalmente, há que se compreender que quem se opõe à ordenação das mulheres tem seus próprios modos de interpretar as citadas passagens. Fato é, porém, que mesmo os mais intransigentes oponentes da ordenação feminina hão de admitir que algumas destas passagens, pelo menos superficialmente, sugerem que Deus pode usar mulheres em posições da autoridade no Ministério, ou mesmo em posições de autoridade acima dos homens.

Quando o assunto vira para a homossexualidade, será que se encontra tal divisão em relação a isso no que tange ao ensino bíblico? Não, de jeito nenhum. Aqui vão alguns fatos básicos:

- Todas as vezes que a Bíblia fala diretamente sobre a atividade homossexual, ela a considera pecaminosa.

- Quando a Bíblia fala explicitamente sobre o sexualidade humana, sempre o faz no contexto apenas do relacionamentos heterossexual.

- Duas passagens do Novo Testamento (Romanos 1 e I Coríntios 6) parecem considerar todo o comportamento homossexual pecaminoso. Aliás, falar em parece é uma maneira polida de argumentar, na verdade, diversos eruditos bíblicos demonstram que não é só aparência, mas de fato significa essas passagens bíblicas pretendiam (pretendem) realmente indicar exatamente isso (Richard Hays, N.T. Wright, Robert Gagnon, J.G. Dunn etc.).

- Em nenhuma parte das Escrituras há uma pessoa homossexual retratada explicitamente como líder no Reino de Deus.

Assim, enquanto os proponentes da ordenação das mulheres evocam muitas passagens bíblicas como testemunhas para sua posição, os proponentes da ordenação gay não têm nenhuma passagem bíblica específica ao lado deles. Podem-se encontrar proponentes formulando suas posições com base em argumentos do silêncio, como: “Jesus nunca condenou o comportamento homossexual”. Isso é verdade. Mas também nunca condenou o abuso de criança, poluição do meio-ambiente ou o próprio racismo. Dessa maneira, devemos desconfiar dos argumentos do silêncio, especialmente quando, por tudo o que sabemos da Escritura e por tudo podemos saber das posições culturais prevalecentes nos seus dias, tudo enfim vai no sentido de que Jesus jamais aprovaria o comportamento homossexual.

O fato de a Bíblia nada oferecer de específico para ajudar os proponentes da ordenação gay explica, na maior parte das vezes, por que eles já não tentam mais interpretar a Escritura em proveito deles. Simplesmente não conseguem qualquer ajuda para seu argumento. A única maneira de se conseguir fazer a Bíblia apoiar a homossexualidade é apontar às passagens que recomendam amor ou justiça, e então defender que é amável e justo aprovar a ordenação de homossexuais ativos. Mas esta interpretação do amor e da justiça vai de encontro com o ensino da Escritura. Não se está amando nem se está sendo justo por justamente aprovar aquilo que justamente a Bíblia revela ser pecado.

Embora não reivindiquemos o dom da profecia ou vidência, pensamos que é altamente improvável que presbiterianos que confessem a autoridade plena da Escritura endossem a ordenação de gays e lésbicas ativos, mesmo que possam endossar a ordenação de mulheres. De uma perspectiva social e cultural, esses dois temas que imbricam a ordenação poderiam ser olhados de forma similar. Mas de uma perspectiva bíblica são radicalmente diversos.