quarta-feira, 14 de novembro de 2012

DESTINO E PREDESTINAÇÃO EM CALVINO

DESTINO E PREDESTINAÇÃO EM CALVINO


Por Olivier Abel

O perfil intransigente, quase caricatural, de Calvino, em muito se deve à terrível palavra "predestinação", que tem se tornado quase que o resumo de sua teologia, e como que seu estilo. Examinando de perto a ideia da predestinação, trata-se menos de uma doutrina estável e mais um paradoxo dinâmico de extrema tensão típica duma inflexão. Quem pode defender que a sua existência esteja sujeita a uma doutrina tão terrível, o que equivale dizer tão escandalosa, e assim mesmo se referir a ela como "doce e mui saborosa"? Essa questão não envolve somente a coerência do nosso teólogo. Sequer diz respeito à sua coerência biográfica, sob a qual essa ideia de qualquer sorte se sustenta, atinge mais diretamente a questão da coerência subjetiva do seu pensamento teológico. Meu propósito é levar a sério o sentimento de Calvino quando ele fala da doçura da predestinação, e buscar entender o que ele quis dizer com isso. Enquanto isso, desde sempre a predestinação tem despertado, sobretudo no meio protestante, (Arminio, 1560-1609), fortes objeções, e também não podemos deixar de tentar compreender a recepção do tema, que parece ter induzido um endurecimento progressivo de Calvino. No entanto, a predestinação é um dentre outros temas em Calvino, e as páginas dedicadas a este tema têm-se mostrado proporcionalmente menores do que as dedicadas a outros temas tratados em sua grande obra, as Institutas da Religião Cristã. A doutrina tem lugar nesse livro, junto com a da providência, e por derivação é colocada ao lado do tema da justificação. Por que então essa sensação de que com o passar do tempo, ao invés de amenizar, Calvino insiste em enfatizar a dualidade do paralelismo eleito/réprobo, no que parece ser a compreensão da relação inversa, mas talvez mais assimétrica, entre a ignorância teórica e a segurança prática? Isso é exatamente o que precisamos considerar. Minha ideia é de que há o sentimento de que seus adversários não chegaram a captar o que ele quis dizer, melhor dizendo, sobretudo, não o entendia e o expunham com má fé.

Não poderia continuar esse meu comentário sem antes trazer dois testemunhos pessoais. Participei alguns anos atrás dum debate na televisão com o simpático geneticista Axel Kahn, em que ele acusou Calvino de determinismo. A predestinação foi lançada ao ar por ele como destino supra-determinado, uma espécie de pré-determinismo. Se não for possível a liberdade de ação como se determinar a responsabilidade? Esta é a principal objeção de Armínio, e dos jesuítas que seguem Molina. De uma vez por todas: isso não é uma caricatura, nem um exagero, mas é a completa má-interpretação, a inversão da ideia de Calvino. No entanto, deve-se dizer que a idéia de "predestinação" se presta à inflexão (reversão). Ora, Calvino com seu pensamento foi contemporâneo e atuante de uma quebra de paradigma neste sentido. Estamos então prestes a ver um mundo passar de completamente vivificado e finalizado pela bênção divina para um mundo mecânico, aonde as forças são inertes, sem propósito, para em seguida, de um mundo desencantado, desenfeitiçado, para um arranjo simplesmente maravilhoso, o teatro da glória de Deus. O tema da predestinação, não se confunda com o da providência, teve que ser recebido num momento de grave conturbação, mas não tem nada a ver com os mecanismos do mundo, exceto, talvez, numa espécie de contraponto negativo, como se fosse um limite. E contrapor fatalidade à liberdade não faz sentido aqui: os tempos, a mecânica do mundo e a da eternidade dos decretos divinos, não estão situados no mesmo registro temporal que não possam se encontrar - Kant trabalharia justamente com esta ideia. A predestinação colocava um limite para o conhecimento, que foi substituída pela concepção da caixa vazia. Calvino escreveu em 1550:

“não me detenho muito em analisar o prejulgamento a que nos impõem nossos adversários de que nos postamos como os filósofos estoicos dos tempos passados, que submetiam a vida dos homens aos astros, ou imaginavam-nos submetidos ao que chamavam de labirinto de causas fatais. Deixamos essas reflexões para os gentios, pois a predestinação de Deus não tem nada a ver com isso." Des Scandales, Genebra: Droz, 1984, p.124.

Recordo que há muito tempo, ainda quando criança, passávamos um verão com nosso avô paterno, que vinha de uma família de calvinistas estritos, só que quando estava na escola normal se encantara por Victor Hugo, foi ali que ele me dissera: "Eu não posso imaginar a salvação que não seja universal". Ele me confessou o seu pavor e, assim, implicitamente, a sua recusa a um Deus severo, a um juiz divino que pudesse separar os seres humanos entre bons e os maus. E mais, recusava a ideia de alguns eleitos dentre uma grande massa indiferente e perdida. Não é ideia calvinista a de que são poucos os eleitos? E não é essa a razão de sucesso desta doutrina, em tempos de perseguição? Vamos por um momento nos colocar na pele dos europeus, em primeiro lugar dos franceses perseguidos por sua fé, tendo perdido tudo o que tinham, e muitas vezes até os entes mais queridos, e encontravam refúgio em Genebra. Pelo menos lá encontravam, na fortaleza inexpugnável da predestinação, a ideia de que as suas tribulações atestavam que eles eram escolhidos e parte do pequeno rebanho.

Essa recepção, no entanto, de ressonância imediata, sem dúvida, não deixa de perpassar a ideia de Calvino, mas está longe de ser uma sentença definitiva. Em seu comentário sobre De Clementiae de Sêneca, ele criticou o príncipe que governa pelo medo, sob o terror. Aqui, mais uma vez fica-se à beira do contra-senso, à beira da confusão de estilos. Calvino não deixa de separar a política da religião, mas se levanta contra o uso político da teologia apocalíptica do Juízo Final, a respeito do qual se mantinha muito cuidadoso. E ao voltar-se para o âmago propriamente teológico da doutrina, lá se encontrará um par de registros inseparáveis: por um lado, há a justiça de um Deus que condena nossa maldade como condição universal, e há por outro, o amor de um Deus que oferece incansável aliança de vida nova, que é a sua eleição incondicional. A vaidade e o zelo não podem encontrar espaço entre os dois, e nenhum poder eclesiástico ou civil pode daí extrair orgulho ou dividendos. Vou terminar essas preliminares com o relato da minha própria entrada no tema da predestinação. Bayle foi quem a apresentou para mim, em seu Comentário filosófico sobre as palavras de Jesus Cristo "obriga-os a entrar", hoje conhecido como o seu tratado Da tolerância. Tem-se precisamente a ideia de que existe em nós algo que não pode ser forçado. Bayle mostra o absurdo de punir alguém por não ter olhos azuis, ou por que não goste de badejo. Em matéria de fé e "consciência", com razão mais forte ainda, há uma parte em cada um de nós que pertence a Deus, e que ninguém pode colocar a mão. Algo indeclinável. Isto é predestinação, a libertação teológica, psicológica e política. E só porque pode ser vista como promessa não inteiramente cumprida, é que devemos abrir algumas bifurcações.



LIBERTAÇÃO TEOLÓGICA: RELEITURA DE CALVINO.

Num primeiro registro, a predestinação é uma espécie de destino superior, uma vocação divina tão caprichosa que é capaz de destruir todos os destinos. Em certo sentido a "salvação" significa a ruptura com as fatalidades. Motivo por que não há boas obras, nem boa doutrina, sequer boa igreja que nos possam garantir a salvação. As obras, as doutrinas, as igrejas são secundárias, e se uma ou outra coisa é colocada em primeiro plano vê-se que não passa de confusão a respeito da devida apreensão do Evangelho da sola gratia. Senão considerem-se os textos. Cito aqui a primeira edição das Institutas, em francês, de 1541, onde temos o Capitulo VIII intitulado "da predestinação e da providência de Deus" - na última edição a mesma seção encontra-se nos capítulos de XXI a XXIV . A esses textos principais, pode-se adicionar o texto de 1550, De Praedestination et Providentia Dei Libellus, e Advertência Contra a Astrologia, de 1549. Isso é o suficiente, e já é muito. E há que imediatamente distinguir-se, como fazem os títulos e conforme se observa acima: a providência do Deus Criador no que concerne a este mundo e seu arranjo, o arranjo de sua história além deste, e a predestinação do Deus Redentor que diz respeito apenas à salvação do sujeito diante de Deus, e do sujeito em relação apenas ao Reino de Deus: e este não é outro mundo em prolongamento, mas outro registro que suspende o registro dominante deste mundo. Calvino entra justamente no tema da receptividade: a aliança de vida não é pregada de forma igual, mas até onde é pregada "não acha a mesma receptividade". Não é o caso, acrescente-se, de terreno que não haja sido trabalhado. Ele pode ter sido trabalhado demais, educado demais, remexido demais. É certo que a falta de preparo faz com que o ouvido fique insensível, mas é igualmente certo que o excesso, para torná-lo muito sensível, também o imuniza – como sói ocorrer numa lavoura mecanizada. Em qualquer caso, é um fato aparentemente injusto, pois "nem padece dúvida de que esta variedade sirva... ao arbítrio da eterna eleição de Deus". É precisamente por causa deste fato aparentemente absurdo que nenhuma convulsão dolorosa serve de ocasião para explicarmos a eleição e a predestinação de Deus, disse ele. E de modo que esse é o nosso leve e suave prazer (Calvino, digo, referia à doutrina suave e mui saborosa ), entrar com confiança nos caminhos prazerosos de Deus!

Desde os primeiros parágrafos, a gente se sente tomado pelo amplo movimento de uma espécie de dupla reversão. Primeiramente, não devemos procurar saber, penetrar no segredo de Deus (este é o mesmo movimento que tivemos num texto anterior da Calvino muito antigo sobre a morte ). Calvino fala muitas vezes da “louca curiosidade” que lança os seres humanos num pântano ou num labirinto. Se há um labirinto do julgamento de Deus, um labirinto kafkiano não só pelo processo, mas pela lei, a graça por si própria, é a única maneira de sair do labirinto... ou de não entrar nele! A questão da predestinação fica simples por si só,

“...[é] a curiosidade dos homens [que] a torna assaz confusa e inclusive perigosa, visto que o entendimento humano não se pode refrear nem deter-se, por mais limites e termos que se lhes assinale, para não extraviar-se por caminhos proibidos e elevar-se com empenho, se fosse possível, (...) que se lembrem de que, enquanto investigam a predestinação, tentam penetrar nos íntimos recessos (santuário) da divina sabedoria, na qual, se alguém segura e confiantemente irrompe, (...) estará a adentrar um labirinto do qual não achará nenhuma saída. (...) [Que não] nos cause vergonha ignorar algo nessa matéria na qual [sim] há certa douta ignorância...” - (Institutas da Religião Cristã, em francês, Cap VIII, Paris: Belles Lettres Les, 1961, p.58-59 Volume 3. Este tópico será alvo de particular exploração filosófica por Descartes e Kant..)

Por outro lado, contudo, não devemos quedar em tal modéstia em relação a esta questão, para que prevenindo contra qualquer curiosidade, se retira a ponto de “ser sepultada qualquer menção à predestinação”, e assim venhamos incidir numa espécie de “negligente ingratidão”. Calvino aponta aqui, de modo extremamente presciente e judicioso, uma armadilha ainda pior do que a primeira. Posto que,

"não perscrutemos as coisas que o Senhor deixou recônditas em secreto; e [que] não negligenciemos as que Ele a pôs a descoberto, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra".(Ibid. p.61).

O conceito da Predestinação é então distinguido tanto do da Presciência como do da Providência .

“Chamamos predestinação o eterno decreto de Deus pelo qual houve por bem determinar o que acerca de cada homem quis que acontecesse. Pois ele não quis criar a todos em igual condição; ao contrário, preordenou a uns a vida eterna; a outros, a condenação eterna. "(ibid. p.62).

Assim definida, devemos reconhecer que a predestinação é de fato uma teologia cortante, e até mesmo assustadora. Alguns acham que a escrita é pesada, e assusta desnecessariamente. Talvez não possa ser de todo inútil, ainda que devamos criticar duramente o uso político do medo, contudo deve-se tomar cuidado para não cair noutro extremo do sentimento aguado e muito fácil que diz respeito à indiferença da benevolência geral do "Bom Deus". Certamente então todo o enigma é resolvido quando tudo fica claro, como Kierkegaard disse, quando “todas as dificuldades são aplainadas”!

"Nós confessamos que a ofensa é universal, mas dizemos que a misericórdia de Deus atende a alguns. Que então atenda a todos, dizem eles. Mas nós os replicamos que se assim fosse, porque ele também não se mostre justo e assim castigue a todos. Como eles não querem apoiar isso, eles não estão tentando remover o poder de Deus de mostrar misericórdia? Ou permitir que somente em determinada condição que ele desvie o seu julgamento?"(Ibid. p.83).

Mas eu acho que, para entender a idéia teológica da predestinação, devemos chegar à pragmática da sua recepção. É sempre uma questão de fundo em Calvino: que uso fazer de um texto, de uma idéia etc.? O que, para nós, se nos é permite fazer? Aqui, há um uso pastoral, uma comunicação “pastoral" evangélica porque se não sabemos quem é eleito, ou não, temos de ser afetuosos para desejar, para pressupor, a salvação de todos, e temos que agir como se todos fossem eleitos . O ponto teológico da doutrina é prático.



LIBERTAÇÃO ÉTICA E PSICOLÓGICA

Gostaria agora de mostrar como a ideia puramente teológica da predestinação pode ser por vezes vivida como uma libertação moral e pessoal. A tragédia no tempo de Calvino não era a tragédia da morte, enquanto decomposição do corpo, mas a da loucura trágica , enquanto desintegração da alma. Há tanto o fazer, saber e crer, conscientemente, deliberadamente, quanto o fato de que não temos mais certeza do que realmente queremos; dizemos ou fazemos. Sequer sabemos o "que" somos - não apenas diante da morte, mas da vida diante de Deus. É o problema moral da liberdade predestinada na tragédia de Édipo, à sombra de um deus do mal, e a realidade assustadora dos filhos pagando pelos pecados de seus pais, que reaparece aqui de modo rasgado como arguir a questão do sujeito singular, sua liberdade tola e terrível, e a fadiga do ser livre que se esfarela e se espalha.

Tento explicar. Há, claramente, em Calvino, o que é representante de uma era, uma angústia, uma sensação de asfixia, de estar preso (imagens do labirinto e do lamaçal): logo sucedida pela escapada, pelo esvaziamento, pela separação, pelo libertar-se. Mas no mesmo movimento existe a angústia da separação, do vazio, da queda no vazio, da desintegração, não há nada para se agarrar, ninguém com quem se reunir. O medo da loucura, não é simplesmente um sentimento de alma, é o horror de uma espécie de purificação impossível, somos levados através do labirinto das boas obras e da boa fé, onde se sente, no entanto, cada vez mais escravizado e condenado, com o sentimento horrível de ter que amar a Deus sob coação e engodo. A alternativa seria a loucura da liberdade que ocorre sob a lei feita subjetivamente, que acaba condenando o individuo à solidão do separado, do livre porém sem a ânsia de ser ancorado, impotente para sair de sua própria depressão. As reflexões de Lutero ou La Boétie apontam para o servo arbítrio ou para a servidão voluntária. Para além do gênio do mal de Descarte encontra aqui a leitura não apenas mais confiável, mas tremenda diante do medonho da predestinação - e se me fosse dado conhecer que estou incluído no plano de outrem? E se eu fosse o que não quero ser? se eu fiz o trabalho de outro? Quem sou eu, reflito de mim para mim mesmo, o que eu faria se estivesse completamente livre do olhar e do discurso do outro que me controla? Na verdade, é uma espécie de loucura, o desejo de ter a certeza de que sou eu mesmo quem decide e escolhe algo para mim, porém sabe-se que nunca de forma totalmente independente. Assim, se entra no círculo vicioso do medo de ser o que é – o cansaço de si mesmo.

A predestinação para Calvino é simplesmente a solução para este problema, e não se surpreende se alguém esquece a pergunta, a resposta que se tem se torna novamente uma questão. Isso é muito comum na história das idéias. Calvino conta a história da eleição, a partir da eleição do povo de Israel como uma dupla progressão na singularidade eletiva da aliança e na sua universalidade: o problema não expõe o dilema do grande rei, do profeta ou do herói trágico. Trata-se do problema de todos. O que ele chama de andar pelo medo, andar com desconfiança, é típico da conversão sem arrependimento. O “arrependimento” aqui é ainda aquele preocupar-se consigo mesmo, com a própria sombra, uma maneira de ver se a sombra o acompanha, se é que isso é mesmo uma sombra. A predestinação rompe com estas complicações. Nada pode afetar a salvação, há apenas o despojar de toda a pretensão de fazer ou merecer, ou até mesmo de saber; é uma questão de recebê-la quase inconscientemente, com gratidão, no momento em que se confia na graça de Deus. Tudo o leva a se submeter a Deus, tendo “a alma esvaziada de qualquer outra cogitação” que não o amor de Deus, e o "olhar para longe de nós mesmos" . Vou tocar no mesmo tom: a necessidade de esvaziar de qualquer preocupação consigo mesmo e com a sua própria salvação, descentrar-se, faz toda a diferença entre mim e os outros; entre mim e eu em outro momento da minha vida. Esta é a ideia da predestinação, há um ponto em mim, que talvez seja mais do que eu mesmo, e me escapa, não pertence a mim, que se desenrola como se não tivesse a ver comigo. A predestinação defende o desconhecimento de si mesmo. Como se a despreocupação fosse a ponta visível, mas o inconsciente de si desemboca num sentimento imenso e íntimo de eleição: Calvino pode vender seu direito de primogenitura, como quiser, por que ele não pode perdê-lo!

A economia psíquica tem necessidade de sinais da eleição? As boas obras, como bons frutos, são todos os sinais externos, mas que pode causar orgulho, e de alguma forma fazer com que se esqueçam o que eles são. Poderíamos, então, dizer que o sentido da vocação é um sinal interior, bem como o esforço de santificação. O sinal da fé seria a preocupação da própria fé, que nunca é garantida - é isso que Kierkegaard diz. Ao ler Calvino, no entanto, há a percepção de que não há necessidade dessa ansiedade permanente, não há necessidade desta multiplicação de obras para se ter segurança. Tudo se passa como se o verdadeiro sinal da graça fosse precisamente reconhecido em face da graça!

Só o desconhecimento da graça permite o desconhecimento da sua salvação, e do eu. O desconhecimento do eu comporta tanto a liberdade de se separar, de esvaziar, a de deixar de "receber" em uma parte do eu que espaça de qualquer domínio, quanto o compromisso que traz a existência em resposta a uma chamada mais forte do que você, mais forte do que as forças deste mundo, e restaura ao eu outra coerência.

Predestinação, uma parte do capítulo VIII das Institutas é dedicada a este tema, não desresponsabiliza o individuo, mas lança a responsabilidade para um segundo nível, o da responsabilidade de um individuo que atende o chamado para retroceder, o que equivale dizer de "quem" crê porque supõe que é, diante de Deus, dos outros, mas sem segurança, sem pára-raios. Sem a garantia de respostas prontas. Trata-se da constante reabertura da “caixa vazia”, a predestinação faz de nós adultos, e nos livra tanto da auto-confiança quanto da auto-preocupação.



LIBERTAÇÃO POLITICA

Sobre este registro muito mais, a predestinação mostra a dureza que foi quebrar a grande cadeia cósmica e política de então, e induzir uma sociedade mais liberal, individualista. A força da libertação moral, política e social de uma doutrina é por vezes sem preço. Em qualquer caso essa é a sensação que decorre da experiência da leitura de Bayle, quando ele mostra os direitos da consciência errante, da consciência que labora em erro, são também direitos do próprio Deus.

Encontramos isso em seu Comentário Filosófico sobre "Obriga-os a Entrar" , publicado em 1686 após a morte de seu irmão Jacó nas prisões de Luís XIV, após a revogação do Édito de Nantes, que pretendia proibir os huguenotes de deixar o reino, e forçá-los a se converterem ao catolicismo. Ali se encontra que qualquer verdade é verdade putativa, verdade de crença: "O homem pode crer que ele não está errado, não pode saber com certeza", e ainda "a quem quer que seja que a sua consciência seja bem iluminada se lhe permite avançar na verdade, a consciência errônea se nos permite crer ser isso a verdade "(CP p.522-a e 422-b). E é por isso que a obrigação de crer é absurda, porque ordenar que se subscreva com a mão não é o mesmo que ordenar à consciência que afirme: os indivíduos “antes suariam no meio da neve, tirariam antes da sua carne e dos seus ossos vinho e o óleo do que de dentro da alma lhes sairia tal ou qual afirmação”.(CP p.385-b). Porque não depende de nós que esta ou aquela afirmação se nos pareça verdade. A obrigação de aquiescer a uma crença é ainda mais absurda do que punir os indivíduos que não têm olhos azuis ou não goste de determinado molho (CP p.375-a), é ainda mais ridículo, ele escreveu que, se o Papa Adriano VI tivesse obrigado seus Estados a experimentar de badejo (CP p.384-a).

Ocorre que esta liberdade de consciência vem direto da doutrina da predestinação, que qualquer que seja a nossa "condição" o juízo final (eleitos ou condenados) que não sabemos, e ninguém pode pretender desvendar este “véu de ignorância" sem se lançar loucamente num labirinto mortal do julgamento final", como escreveu Calvino. Assim a criação divina da ordem social, política ou eclesiástica, está perdida, escondida ou esquecida, e esta deslegitimação é um ato político da maior importância histórica. A predestinação deixa em cada um uma "reserva" a qual ninguém pode por a mão. É por isso que a liberdade de consciência não depende nem clérigos, nem príncipes, nem mesmo dos próprios indivíduos, e o fato é que se depende de Deus somente: "Os direitos da consciência são diretamente os do próprio Deus" (CP p. 423-a). A consciência aqui tem um significado diferente na psicanálise, ou em projetos de conscientização ativistas: é simplesmente o que não depende de mim, nem me pertence.

No registro político mais uma vez vemos que a ideia da predestinação é uma ideia vazia, no sentido que é uma ideia insuscetível de pesquisar o conteúdo já que envolve um mistério complicado: é uma ideia dinâmica, ideia pragmática, uma ideia que implica em dar conta de sua recepção. "Parece que todos nós somos predestinados e não o sabemos, apesar disso...". Mais do que a propriedade privada e as liberdades ditas burguesas, eu acho que a lenta formação de um domínio íntimo, onde nem os poderes eclesiásticos, nem os poderes legais e políticos tinham o direito de entrar, desempenhou um papel importante na formação do que hoje chamamos de "sociedade civil". E parece-me útil recordar que o espaço para as luzes e para a transparência da discussão pública só é possível quando é limitado pela obscuridade e opacidade lançadas por este véu da ignorância final.

Na filosofia política, quando falamos de "véu da ignorância", pensamos, com John Rawls, na ideia de que as regras mais precisas devem ser estabelecidas por meio de temas colocados sob a hipótese do que pode haver por trás do véu de ignorância sobre as condições existentes – de ricos ou pobres, de homem ou mulher, de nativo ou estrangeiro, etc. Estas, então, são escolhidas com base no gradiente que vai dos mais favorecidos para os mais desfavorecidos! Mas esta ficção de fundamento pressuposto, também é encontrada em Rousseau e Hobbes, e é típica da política moderna. Uma das minhas suposições aqui é que Calvino desempenha um papel muito importante no desenvolvimento deste paradigma político. Eu não quero dizer que Calvino o inventou totalmente, há isso em outro lugar na República, de Platão, bem conhecida de Calvino, o "mito" da equitativa distribuição entre as almas de alguma forma por trás da cortina, existente no mundo. Mas de alguma forma há sempre um recomeço a cada ruptura, retomando-se promessas não cumpridas de Deuteronômio em termos de Jubileu, esta redistribuição era feita sete vezes a cada sete anos em todos os lugares, todas as chances era dadas a cada um, indistintamente. Tal é a pragmática da ideia de predestinação: quebrar todos os destinos por um destino superior e que ninguém conhece, em que se têm suficiente confiança e despreocupação quanto a graça para tranquilamente sair do labirinto, e colocar-se no mundo e diante de Deus tendo todos sempre e incansavelmente indistintamente uma nova chance, a caixa vazia. Sim, a predestinação é de fato uma ideia cortante.

Publicada no Boletim de Estudos protestantes, Genebra, outubro de 2004

(Publicado com a Devida Permissão do Autor Concedida em 14/11/2012. Site do Professor Olivier Abel: www.olivierabel.fr )

3 comentários:

Rubem Amorese disse...

Prezado Anamim:
Este texto é denso. Vou lê-lo com atenção e cuidado. Talvez até reflexão. Obrigado.
Rubem Amorese

Lúcy Jorge disse...

Acabei de encontrar seu blog, e gostei do tema: interessantíssimo. Estamos vivendo tempo finais e difíceis, portanto, é necessário que pessoas se levantem para anunciar a salvação
através de Jesus Cristo.
Atalaiar é a ordem nos últimos dias da Igreja de Cristo.
Deus o abençoe!
E continue nesta missão que Jesus lhe concedeu.

APDSJC!
***Lucy***

A propósito, caso ainda não esteja seguindo o meu blog deixo aqui o convite:
Fruto do Espírito

P.S. Convido a conhecer o blog do irmão J.C.de Araújo Jorge.
Mensagens atuais, algumas polêmicas, porém abençoadoras...
Acesse e confira:
Discípulo de Cristo

Narrativa Bíblica Blog disse...

Sinto muito amigo, o texto cansativo e pouco objetivo.